segunda-feira, 25 de junho de 2012

O talento e a coragem de Shamsia Hassani, a única mulher grafiteira do Afeganistão


Por blog ricardo-setti

Shamsia-Hassani
Shamsia Hassani posa diante de uma de suas obras (Foto: Kabulatwork.tv)
No interior de um dos milhares edifícios de Cabul transformados em ruína desde o início da invasão americana do Afeganistão, em 2001, uma jovem de traços delicados utiliza uma lata de spray ao pintar uma parede, utilizando o véu muçulmano para proteger a boca e o nariz da toxicidade da tinta.
Trata-se de Shamsia Hassani, nascida em 1988 em uma família afegã refugiada no Irã. Radicada na devastada capital do Afeganistão desde 2005, após participar de uma oficina em 2010, ela se tornou a primeira – e até o momento única – grafiteira do país. Já no ano seguinte, foi convidada a participar do Festival de Artes alemão Wash e recentemente tornou-se professora de desenho na Universidade de Cabul.

Burcas e bolhas
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Entre duas de suas mulheres: Shamsia gosta de acentuar as curvas das afegãs quando as pinta, devolvendo-lhes a feminilidade sufocada pela opressão religiosa (Foto: arquivo pessoal)
Para Shamsia, grafitar em Cabul é um ato de imensa e inédita coragem. Por vários motivos: confronta a ideia obtusa de setores mais radicalmente religiosos da sociedade afegã, para os quais esta modalidade é condenável por ser “ocidental”; as obras têm auto teor crítico; e, sobretudo, a autora é uma mulher.
Embora depois da invasão americana tenha havido mudanças na legislação, na vida real a grande maioria das mulheres no Afeganistão está reduzida a uma condição próxima à de escravas: devem obediência total aos homens da família, não podem estudar (mesmo quando existem escolas, o que muitas vezes acontece), não se permite que saiam às ruas sem algum homem da família ou sem burcas — aquelas odiosas túnicas que cobrem as mulheres da cabeça aos pés e só lhes permite ver o mundo por meio de uma espécie de rede na altura dos olhos –, não podem exercer a maioria das profissões, trabalham em casa de sol a sol, não podem viajar para lugar algum sem autorização do pai, do irmão mais velho ou do marido… e por aí vai.
A maioria dos trabalhos enfoca a solidão e opressão feminina pós-Talibã, resumidas em figuras femininas cobertas por burcas e cercadas, ou por arame farpado ou bolhas.
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As mulheres de Shamsia: "como peixes mortos" (Foto: arquivo pessoal)
“As mulheres e as vítimas da guerra são como peixes mortos em um rio, flutuando sem rumo enquanto o resto da sociedade flui”, explica Shamsia, contábil formada que tentou estudar Belas Artes em Teerã, mas foi impedida porque os refugiados não têm esse direito no Irã dos aiatolás. “As bolhas simbolizam as palavras que elas querem dizer mas não o fazem, porque em Afeganistão não lhes dão voz”.
Com esta terrível constatação em mente, ela escreveu um poema no idioma persa ao lado de um de seus grafites, no qual retrata uma solitária afegã presa a uma burca:
Se um riacho deve se tornar rio novamente
Mas os peixes estão todos mortos
Não há mais retorno para os que já partiram
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Formato e conteúdo interagem no trabalho de Shamsia: a mulher com burca "senta" na escada do prédio em ruínas. Ao lado lê-se o poema escrito em persa pela autora (Foto: Mohammad Ismail - Reuters)
Shamsia trabalhando
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Um ônibus de Cabul, segundo Shamsia (Foto: arquivo pessoal)
“‘Grafite’ é uma palavra nova no Afeganistão”, diz Shamsia em vídeo, produzido pelo surpreendente site Kabulatwork, dedicado a mostrar “o outro lado de Cabul”, ou seja, o de uma grande cidade despedaçada por sucessivas guerras que tenta reerguer-se e das pessoas que lutam para isso. “Acho que a arte pode mudar a sociedade, e estamos fazendo o melhor que podemos”.
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Mãos - e latas - à obra (Foto: Kabulatwork.tv)
O minidocumentário, que inclui a cena retratada no primeiro parágrafo deste post, traz ainda uma série de passagens interessantes e que ajudam a entender o trabalho de Shamsia (embora haja apenas legendas em inglês): imagens aceleradas de murais sendo pintados pela artista, ela visitando um antigo centro cultural russo em Cabul – aflita pela possibilidade de existirem minas no local – e seus esboços criados no computador, com os quais pré-visualiza seus próximos grafites e em que lugares os fará.

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